Um refúgio
por Jorge C Ferreira
Acariciavam-se, beijavam-se, percorriam o corpo um do outro. Um suave encantamento ia nascendo. Assim começava tudo. Podiam os vidros da parte da frente da casa estilhaçar-se. Os estrondos serem enormes. Haver gritos nas ruas. A partir daquele momento estavam na sua bolha. Algo que parecia um bunker. Nada os incomodava. Assim continuavam a ser eles. Fizeram amor com a mesma vontade e paixão que sempre os acompanhou. Para eles só existia aquele espaço único, aquele delírio de estarem sós. Adormeceram agarrados, como sempre. Um sono que continuava o sonho vivido. Um sonho que queriam eterno.
Ela tinha cabelo negro. Um cabelo farto, ondulado, comprido, onde ele gostava de esconder as mãos. Ele era louro, sardento. Um cabelo curto que ela gostava de acariciar enquanto tentava contar as sardas que moravam naquele corpo. De religiões diferentes, mas de amor único. Nunca deixaram que qualquer diferença de pensamento os dividisse. Que as cores os afastassem. Aprenderam a língua um do outro. Sempre se beijaram numa língua única. Beijos únicos que vão lembrar para sempre. Sinais de uma vida.
Já tinham levado uma vida social intensa. Festas, largos serões em casas de outros e na sua. Até acharem que o mundo estava a ficar diferente e as pessoas com ele. Foi aí que decidiram mudar de vida. Apenas saber dos mais próximos, nunca irem a casa de ninguém sem serem convidados e, mesmo assim, com alguma dificuldade.
Houve pessoas que os começaram a achá-los estranhos. Eles cada vez se mostravam menos. Tinham o seu refúgio. Nele juntavam as vidas um do outro. Ela escrevia. Ele lia o que ela tinha escrito em voz alta, apareciam as inevitáveis emendas. Era o livro que nunca tinham escrito. Que provavelmente nunca seria editado. Não se queriam expor. Não os cativava serem conhecidos. Queriam ser apenas eles. Serem um para o outro.
Sabiam que a vida que levavam tinha os seus perigos. Podia levar a uma espécie de loucura. Podia isolá-los de tudo, de si próprios. Da vida. Do viver.
Já há muito que a televisão e a rádio tinham sido expulsas daquela casa. Não tinham computador ou telemóvel. Apenas um antigo telefone fixo antigo restava a um canto do seu refúgio. Tudo era espartano naquele lugar.
Quando a manhã chegou beijaram-se de novo antes de se levantarem. Tomaram banho juntos. Tomaram o pequeno-almoço como se fosse um namoro. Tinham um cantinho para tal. Quando saíram à rua foi a descoberta do nunca esperado.
A parte da frente da sua casa com os vidros estilhaçados. A rua, um tapete de vidros e destroços. Corpos acabados. O desencanto dum rasto de sangue. Havia gente que deambulava sem rumo. Agora sim, ouviam os tiros. Os gritos, estrondos de várias intensidades.
Decidiram que não iam para lugar algum. Voltaram a sua casa. Arranjaram o melhor possível o que estava estragado. Depois voltaram para o seu refúgio.
Fecharam a porta e fecharam-se. Também choraram, mas logo decidiram que não o podiam fazer. Sentaram-se nas duas cadeiras que tinham e cada um falou com quem acreditava. Ali ficaram sem saberem o seu futuro.
Não sei o fim desta história. Só sei que nada disto se justifica, seja feito por quem for.
«Tão triste! Eu gostava de saber o que lhes aconteceu.»
Fala de Isaurinda.
«Triste, como o que estamos a ver. Tudo tão longe e tudo tão perto. Mas há sempre uma esperança.»
Respondo.
«Sim a fé e a esperança nunca se devem perder.»
De novo Isaurinda e vai, a persignar-se.
Jorge C Ferreira Outubro/2023(411)
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Um quarto de quatro paredes, e dois amores, num sentir de união intenso.
De repente o painel de uma parede estala, e da outra sucumbe. Restam duas hipóteses, uma parede esburacada para a fuga e outra que guardará memórias de tempos idos.
Numa correria a palavra PAZ desenha-se apenas na mente, enquanto os olhos são fechados por conta dos clarões acéfalos.
O esconderijo afunila , e o passaporte de um olhar novo caduca.
Amei ler-te, como sempre no continuado traço apelativo de telas … hoje pouco nítidas, e o SOL pouco ou nada iluminará, neste “CONTO”, onde reflecti momentos muito iguais numa guerra colonial, e actualmente muito fiscal.
Abraço muito grato, amigo que muito estimo e admiro … e, por favor, perdoa este adulto bem preocupado … quando deveria estar a conjugar sorridente o verbo apaziguar.
Obrigado José Luís. Intenso o teu comentário. Vamos acreditar no que resta de coisas boas neste mundo desvairado. Vamos acreditar no amor. A minha imensa gratidão pela tua presença neste espaço. Sabes que é sempre reconfortante para quem escreve umas coisas Abraço forte.
Obrigado Fernanda. Importante o modo como chama a atenção para a nossa autodestruição. Mas ainda há o amor. Essa força de recorte mágico que une as pessoas. Vamos acreditar. A minha gratidão por estar neste nosso espaço. Abraço grande.
A existência do paraíso é uma utopia, o mundo a desabar, os que prometeram que jamais seriam surpreendidos; surpresas das surpresas, ninguém poderá prometer o que quer que seja, o perigo espreita, os inocentes sempre os mesmos, uma geração inocente, os velhos que terminam ali o prazo de validade antecipadamente, ainda se pode perguntar, como foi, que aconteceu e como aconteceu, lembrar o holocausto quando a pouca distância a carnificina mostra que a a terra de ninguém está a ferro e fogo,o ódio de sempre, não existe perdão nem divinos abençoados; todos se tornaram pecadores. Dou por mim a perder a admiração, dou por mim com mil interrogações no muro das lamentações, deixo ali uma prece” perdoai-lhes que eles não sabem o que fazem, a tentativa de me convencer que assim foi e irá por outras luas acontecer mais do mesmo. Pergunto-me, que posso responder aos que me possam interrogar a minha opinião? Nada, nada sei, nada vi,apenas um encolher de ombros com desdém, que outra forma terei para não cegar perante tamanha crueldade. Abraço meu amigo, fica bem com todas as possibilidades nesta montra de vida imprevisível a que nos estamos a habituar…
Obrigado Cecília. Que tempo este que vivemos! A intolerância a crescer. Os poderosos a quererem determinar os caminhos. Ser capaz de dizer não. Muito grato pelo teu comentário. Abraço
Belo de ser belo quanto o amor o é.
O ninho.
Abraço longo de trazer ao peito.
Obrigado Mena. Com poucas palavras atingiste o belo. Só o Amor pode vencer a barbárie. A minha imensa gratidão. Abraço grande.
Crónica excelente. Amor em tempo de guerra. Real. As imagens que nos chegam diariamente de modo atroz. Autêntica chacina. Homens, mulheres, crianças. Imagens que doem.
Os senhores da guerra indiferentes ao amor.
Não foi este o mundo que preencheu o sonho de uma vida.
Liberdade, justiça, amor, igualdade fraternidade.
Tudo adormecido.
Que o amor possa salvar a humanidade. A esperança não pode morrer.
Obrigada Amigo, pela sensibilidade e por estar sempre desse lado.
Grande abraço.
Obrigado Eulália. Os senhores da guerra, essa gente sem alma, não sabe do que Amor é capaz. Intenso e certeiro o seu comentário. A minha gratidão por estar sempre atenta. Abraço
Quando lemos a história que contas, de imediato pensamos, é ficção.
Mas o que se passa no Mundo e nos chega pelas notícias, faz-nos acreditar que pode bem ter acontecido. Ainda o mais triste é que o Amor muitas vezes não vence a maldade dos homens.
Gostaria de acreditar que neste caso o Amor venceu e Ele e Ela continuam nesse canto que descreves vivendo uma História Bela e eternamente Feliz.
Os que matam caíram entre os estilhaços de vidro e desfizeram-se em pó…
Obrigado Fernanda. Que bom o teu comentário. Eu ainda acredito que o amor acaba por vencer. A minha imensa gratidão pela tua presença. Abraço enorme.
É admirável o seu olhar sobre o terror, que avassala a terra.A forma subtil e amorosa como a aborda é deveras maravilhosa. Só alguém que sabe amar, nos conta uma tão bela história de um amor apaixonante.
Quem sabe se continuam, no seu refúgio?
Esperança sempre e que a Fé nunca acabe.
Bem haja, querido escritor pela sensibilidade que pôs nesta excelente Crónica.
Abraço imenso.
Obrigado Maria Luiza. Tão bom ler o seu comentário. Tão gratificante. Vamos acreditar na força do amor. Vamos acreditar nas pessoas boas. A minha enorme gratidão. Abraço forte.
O cronista lança-se num escrito de sangue e carne (seus dos outros a que dá voz).
Inicialmente visualizamos uma relação de amor-paixão, alimentando-se a si própria. Concha simbólica e literal, simultaneamente, de dois seres na descoberta mútua e reencontro de sentimentos plenos de beleza e comunhão. Verdadeiramente anímicos. De uma força indestrutível. Motores de vida. Energia psíquica e física única. Mas começamos a ver a “descrição” a afastar os personagens do exterior, subentende-se (?!) alheio, e por definição necessário, ao exterior. A fantasia idílica de um amor identidade tornado realidade. O acento na diferença que não importa. A variabilidade morfológica e ideológica cabe, coexiste pacificamente naquela ligação (quem sabe um pormenor que enriquece, cativa e os insere na humanidade de , quase, todos).
O amor físico de dois indivíduos epigeneticamente diferentes é descrito numa comunicação de iguais. Fusão de corpos que se amam “mecanicamente” numa linguagem universal. Porque o amor romântico (e todos os outros, lê-se também) tem uma expressão única: na vivência dos corpos, das mentes, dos sentimentos… Mas, o poeta, sublimando o sofrível, dizendo sem dizer as atrocidades assistidas, “desvia” a possibilidade do belo para a finitude “destinada”. Anuncia-a antes de a declarar: no afastamento defensivo de uma realidade que delapidava e violentava os seres desta “história”. O afastamento forçado, por um universo doente, legitima-se face à morte, às dores e destruição observadas. Obriga-os a acordar ensanguentados. Recuam e esperam imóveis. O fim. Porque o desfecho será sempre traduzido em diversos fins irrecuperáveis. “Os dados estão [irremediavelmente] lançados”.
A sanidade mental do escritor obriga-o a olhar o futuro com esperança. A possível. Impõe-se sarar a carne que sangra as dores dos outros. Também a sua dor. A ambição de uma serenidade pela cicatrização. Exequível?
Obrigado Isabel. Tão importante, intenso e de um leitura do mundo a roçara perfeição. Esta minha mania de que existe sempre uma saída antes de que o que parece inevitável aconteça. Acreditar nas pessoas. Acreditar que ainda restam refúgios de amor no mundo. A minha imensa gratidão pela sua presença. Abraço grande
Crónica de Jorge C. Ferreira: Um refúgio
Que estória tão impressionante, onde o amor impera e nada nem ninguém o poderá destruir.
O enquadramento subtil dos horrores da guerra e o regresso ao refúgio do amor, mostra-nos como o amor e a esperança são vitais para salvar o mundo.
Adorei a sua crónica!!!!
Obrigado Margarida. O verdadeiro amor é indestrutível. Tem força suficiente para derrotar a imbecilidade dos poderosos. A minha imensa gratidão pela sua presença neste espaço. Abraço grande
Estimado Amigo e Poeta Jorge C . Ferreira adorei o teu texto! Que descrição tão subtil dos horrores a que estamos a assistir! Não podemos perder a Fé! Mas é triste vermos o ódio e ambição sobrepor-se ao Amor!
Bem hajas!
Obrigado Claudina, minha Amiga de tanto tempo. Sim, nunca perder a esperança. Lutar por um futuro que valha a pena viver. Acreditar na força do amor. A minha gratidão por estares aqui. Abraço forte
Jorge, li e reli a crónica.
Muito impactante.
A extraordinária subtileza…
Só o amor e a tolerância poderão salvar a humanidade.
A esperança e a fé certamente que ajudarão.
O ódio é um inferno, uma cegueira, onde só há lugar para o extermínio.
Fim das civilizações.
Muita saúde
Abraço